O que pode o figurino na dança? O Corpo Esculpido na Dança pela Roupagem Moderna.
Expansão do Sentir - Sensorium Cia de Dança Contemporânea Eutônica
Foto: Solange Avelino - Fotografias de Dança
Há tempos venho pensando que, na dança, nos preocupamos com os movimentos elaborados, com a consciência corporal, com os tipos/estilos de dança, suas técnicas e estéticas, e esquecemo-nos do figurino e de sua representatividade na dança. O que pode o figurino na dança?
O que veste o corpo que dança? Será que já paramos para refletir sobre esse importante elemento que configura as danças, quer sejam clássicas, da tradição, folclóricas, modernas ou contemporâneas?
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Este elemento serve apenas para vestir ou serve também como cenário ambulante? Compõe ele uma imagem, uma estética? Tomamos para nossa reflexão o figurino da dança moderna por achar que tal elemento, em um determinado período da história da dança, contribuiu para se pensar em um novo estilo de dança, em um novo paradigma de corpo; em uma quebra de barreiras instituída pelo balé clássico e seus “tutus”, fadas, ninfas e príncipes.
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O texto objetiva compreender como a estética do figurino contribui para o movimento dançado na cena da dança. Parte de uma abordagem metodológica da análise de imagens. Ler as imagens nesse texto torna-se, assim, uma ação relevante, uma vez que as mesmas, longe de serem objeto neutro, acolhem significados que interferem na codificação e decodificação da mensagem a ser transmitida (LEITE, 1998).
Portanto, nesse trabalho, ler imagens significa ler seus sentidos. Por serem as imagens polissêmicas, podemos manter posturas diferentes do olhar. Sobretudo, maneiras diferentes de vê-las e de pensá-las, já que as mesmas se caracterizam por se proliferar, sem que haja um horizonte que limite sua ocorrência visual (LEITE, 1998).
Assim nosso olhar se dirige às imagens como o olhar de um apreciador que, imbuído de uma concepção de mundo, interpreta as obras como um objeto sensível, contextualizado em seu tempo, mas que pode ser ressignifcado no presente. No encontro recíproco entre o apreciador (pesquisador) e a obra (fontes investigadas), é possível o compartilhar de sentidos diversos e a criação de novos horizontes de possibilidades interpretativas.
O Corpo Esculpido na Dança pela Roupagem Moderna
A forma do corpo vestido como objeto no espaço, em movimento e obtido através de sua estética tridimensional, relevos, depressões, concavidades e convexidades (que entre curvas virtuais se movimenta em várias partes do corpo do artista da cena, produzindo ora quadris imensos, ora traseiros empinados, contornos sinuosos, movimentos extrapolados, contidos, alongados, grotescos e sublimes) caracteriza o vestir na dança e, em particular, o vestir na dança moderna.
A dança moderna também rompe com questões relacionadas ao figurino, abandonando espartilhos, sapatilhas de ponta, dando espaço para o surgimento de um vestuário leve, sob influência da vestimenta grega, com pés no chão, fazendo novas proposições estéticas. No século XX, a modernidade instaurou um novo vocabulário estético, junto à criação de um sistema de dança, que refletiu o pensamento moderno, agregando elementos que unem o corpo às forças da natureza, colocam os pés no chão, valorizam a beleza e a perfeição das formas, a relação com a gravidade, movimentos de atração, repulsão, resistências e não resistências. (BARIL, 1987, p. 27).
Na dança moderna, tal figurino foi emblemático nas produções artísticas dançadas por Loie Fuller, Ruth Saint-Denis, Ted Shawn, Isadora Duncan e Martha Graham. Esses artistas da dança criaram coreografas e figurinos que retratavam uma época, um período de suas criações dançadas.
Na dança desses artistas da cena, o figurino não servia mais de adereço ilustrativo para os dançarinos. Tal figurino passava a dialogar com o corpo do intérprete e com os movimentos criados por este corpo. O figurino, nesta proposição, parecia ter extrapolado sua função de invólucro, para penetrar as camadas internas do corpo, perfurar a “alma”, e criar um estado de constante integração com o outro.
Tomamos as danças de Fuller, Duncan, St. Denis e Graham como basilares para se pensar o figurino na dança moderna. Na dança de Loie Fuller se percebe que os movimentos dançantes não são desprovidos de narrativas. Movimentos e jogo de luz concebem uma dança, qual poesia, definida em termos de pura eminência, corporalizando uma espécie de escrita, fugaz inscrição espaço-temporal
(SPALADORE, 2012).
A dançarina convertia-se, então, numa entidade que materializava o efêmero, numa configuração de traços e figuras em movimento. Os desenhos curvos e torcidos de seu movimento e de seu figurino, suas referências à natureza e seu uso de novos materiais e tecnologia foram ingredientes importantes para o ascendente estilo Art Noveau. Dançando em estilo que tinha cuidadosamente desenvolvido
por si própria, à margem da tradição de quatro séculos de dança aristocrática europeia, Loie
Fuller estava sendo seriamente considerada como artista (COLLECTIF RM, 2002; CURRENT & CURRENT, 1997).
Com figurinos esvoaçantes, ela conectava-se à arte e à vida; seu figurino era composto por vários metros de tecido, bem como por hastes, a fim de alongar os braços e produzir movimentos mais amplos, além de um efeito de asas.Ver-se-á que em seus desempenhos, girando entre sedas, Fuller transformou o corpo em cena em uma escultura cinética que mistura o movimento, a luz e o virtuosismo técnico. Sua(s) coreografa(s) criou/criaram as formas fantásticas daquele virtuosismo cênico das primeiras décadas do século XX, partituras coreográficas sugestivas criadas pela manipulação de tecidos e luzes coloridas.
Ao movimentar-se com figurino e luz, ela sugeria formas próximas à de nuvens, mariposas,
flores, pássaros, chamas e borboletas, dentre outras. Fuller criava suas próprias coreografas
figurinos e iluminação, sendo, para Pimentel (2008, p.122)
“[...] fundamentalmente uma criadora de imagens visuais animadas”. A referida autora argumenta ainda que o conceito de movimento, para a artista, não estava relacionado apenas ao corpo dançante, mas também à luz, à cor e ao tecido, pois, quando ela dançava, todos estes elementos estavam fundidos pelo movimento, em uma singular imagem visual e multimídia.
Sobre a dança dessa artista, Duncan (1986, p. 76) diz que
“[...] diante de nossos olhos ela se transformava em orquídeas multicores, em flores do mar, ondulantes, em lírios que se lamentavam em uma espiral”. Para Isadora Duncan, Fuller representava a magia, numa fantasmagoria de luzes, de cores e de formas irreais. E continua Duncan (1986, p.77):
[...] todas as noites, eu assistia de um camarote às danças de Loie Fuller, e era cada vez maior a minha admiração pela sua arte maravilhosa e efêmera. Aquela extraordinária criatura tornava-se fluida, incandescia-se em vida, corria toda a gama das cores, crepitava numa chama, para finalmente alçar-se ao infinito num turbilhão de labaredas.O que Fuller fazia era construir em cena outro corpo, a partir do seu, e fazia isto com luz, tecido e movimento, produzindo formas de borboletas, chamas, fores, dentre outras. Ela estudou e investigou cada um destes elementos e os efeitos que conseguia produzir, investigando o efeito das cores, as formas que poderia construir dançando, bem como as imagens visuais que poderia produzir, quando a luz refletia sobre o tecido e ela dançava (SPALADORE, 2012).
É preciso acentuar que Loie Fuller, americana revolucionária, mais do que lenços que remetiam à liberdade, ao mar ou ao vento, valeu-se de extensões, varetas de madeira, que, escondidas sob seu figurino, projetavam seus braços, produzindo jogos fascinantes com o tecido e a luz, criando dinâmicas onde o objeto não mais tinha a necessidade de explicar uma situação ou remeter a alguma ideia concreta, mas apenas produzir efeitos abstratos, a partir de seu fgurino. A artista era polivalente, pois criava, desenhava, arquitetava seus próprios figurinos (SUQUET, 2008).
Os movimentos do corpo em sua dança não serviam apenas para pôr o tecido em movimento, mas para criar imagens animadas. O que ela apresenta é uma nova configuração de dança, um novo modo de pensar esta arte, que une corpo e tecnologia bem como novos artefatos técnicos, que são suas invenções patenteadas. A partir dela, podemos pensar na dança não apenas como uma linguagem de movimentos corporais, mas como uma linguagem, também, de imagens em movimento.
Se sua dança não expressava sentimentos, nem representava ideias. Sua arte era sensorial e dizia respeito ao controle do código, do movimento e do uso da luz e da cena, todos tão importantes em suas criações. Assim, os desenhos curvos e torcidos de seus movimentos e de seu figurino, suas referências à natureza e seu uso de novos materiais e tecnologias foram ingredientes importantes em sua dança (SUQUET, 2008).
Outra grande dançarina da modernidade, que influenciou este estilo, com seus figurinos, foi Isadora Duncan. Ela dançou de pés descalços, vestida em túnicas gregas, apresentando-se em solos, tendo como inspiração os desenhos dos vasos gregos e os movimentos da natureza. Voltou às origens gregas para dar forma à sua dança, não para imitá-las, mas para aprender com movimentos espontâneos da vida. De túnica e descalça, juntando-se a um helenismo captado em figuras de vasos e estátuas
com o romantismo musical de Beethoven, Chopin, Liszt, Berlioz, Wagner, ela conquistou multidões.
Pesquisadora voraz de sua arte, Isadora Duncan estudou a arte grega para compor suas coreografas; rebelou-se contra o figurino dos repertórios do balé clássico e influenciou gerações de bailarinos. Em seus escritos autobiográfcos, diz ter sido dançarina e revolucionária desde a mais tenra idade. Vivenciando intensamente a continuidade entre seu corpo e a natureza, ela buscou nos fenômenos naturais e na mitologia modelos de movimentos e disciplinas rítmicas.No Metropolitan, em Nova York, dançou nua e descalça. Vestida apenas com um xale vermelho, ela surpreendeu o público e encerrou seu espetáculo dançando o hino nacional francês, numa tentativa intensa e desesperada
de sensibilizar os americanos e chamar atenção para os efeitos da Primeira Guerra Mundial que
devastava a Europa.
Sempre carregando uma túnica em seus pertences, Isadora Duncan dançou o Danúbio Azul, de Strauss, e Ifigênia, de Gluck, aonde de túnica e pés descalços interpretava as virgens de Cálcis. Criou
A Primavera inspirada na tela de mesmo nome, de Botticelli. A respeito dessa criação coreográfca ela diz:
[...] Inspirada nesse quadro, criei uma dança na qual procurava reproduzir os suaves e mágicos movimentos que dele se desprendiam, a delicada ondulação da terra coberta de fores, a ronda das ninfas e o voo dos zéfros, tudo concertado à volta da fgura central, misto de Afrodite e de Madona, a cujo gesto dava-se a eclosão da primavera. (DUNCAN, 1986, P. 92).
Artista astuta e audaz, Duncan, dançarina dionisíaca, permitiu-se coreografar as ideias de Nietzsche, Locke, Grotius, Montesquieu, Beccaria, Russeau, dentre outros que ela admirava. Em determinado momento de sua vida, já reconhecida como dançarina dionisíaca, desejava estudar e prosseguir em suas pesquisas, criar uma dança e movimentos que ainda não existiam, além de sonhar com uma escola de dança. Sobre esses desejos, a dançarina refletia:
[...] Esse desejo de permanecer no meu atelier e trabalhar, desesperava o meu empresário. Ele não
sessava de me bombardear com novas propostas [...] e não raro eu o via chegar [...] para mostrar-me jornais que contavam como Londres e alhures se copiavam os meus cenários, os meus trajes e as minhas danças, e com essas cópias passavam-se por originais e obtinham um certo sucesso (DUNCAM, 1986, p. 115).
De túnica branca e transparente, ela dançou a música Tannhäuser, de Wagner. Tal feito foi um escândalo para a época, pois a túnica transparente desvendava todas as partes de seu corpo, produzindo certo efeito no meio de suas pernas róseas e das de suas companheiras de baile,
intimidando, dessa forma, os espectadores que a assistiam. O despojamento de seu figurino conferiu
a esta artista da cena representar em algumas de suas coreografas sem acessórios ou artifícios
cenográfcos. Tal concepção de figurino sai da representatividade pictórica decorativa para um décor
integral e não incidental. O figurino devia revelar e não decorar o corpo do intérprete da cena.
Isadora Duncan foi, de certa forma, ousada para seu tempo, pois rejeitou o uso de espartilho, além de andar descalça e desprovida de artifícios, o que chocou os americanos. Suas danças com véus e túnicas soltas trouxeram impacto e ruptura aos conceitos estabelecidos, tanto no que se refere ao figurino da dança como à influência que causou em outras artes, como a moda.
Com seus figurinos, a artista conferia uma construção narrativa para suas coreografias, junto a uma cenógrafa, maquiagem, iluminação e direção, própria dos movimentos dançados. Com tal dança e tal figurino, Duncan estabelecia uma comunicação entre sua obra e o público levando em conta fatores como personalidade, sentimentos e marcas de uma cultura. É pertinente dizer que o figurino faz parte
da cena como a roupa faz parte da vida, entretanto, ao pensarmos em roupa, muitas vezes percebemos apenas o aspecto mercadológico e relegamos seu aspecto cultural. Dentro da dança, o pensamento
se assemelha. O figurino é entendido, inúmeras vezes, como um similar da roupa, símbolo do consumo, o que obscurece sua presença simbólica, que agrega à cultura indícios significativos.
Em Ruth St. Denis, percebemos esse aspecto cultural, quando a dançarina interpreta
várias culturas dançantes, a partir de divindades míticas egípcias, indianas, japonesas e babilônicas,
também utilizando o fgurino como elemento de representação:
St. Denis trouxe para seus figurinos exóticos e sua dança a energia da espiritualidade religiosa,
“[...] nela se abolia a divisão entre corpo e espírito, arte e religião” (GARAUDY, 1980, p. 74-75).
O que Ruth tinha em comum com Isadora Duncan era a vontade de dar à dança uma significação humana e espiritual profunda. St. Denis, por toda a vida, pretendeu assumir o papel de profetisa (GARAUDY, 1980). Dançou Radha descalça e coberta com algumas joias, que cobriam
todo seu corpo nu, provocando tanto escândalo quanto Duncan com suas túnicas transparentes.
Desprezando o folclore das danças orientais e dando a estas novo sentido, Ruth St. Denis contribuiu com tais danças em universalidade e vitalidade. Se a roupa que veste o dançarino ajuda a compor seu personagem, em Rhada, St. Denis o compôs com o corpo coberto por jóias, transmudando em seu figurino a dança hindu.
Nesta peça de dança, a função do figurino é contribuir para a elaboração do personagem, mas seu resultado constitui também um conjunto de formas que intervém no espaço cênico da dança. Observa-se, no exemplo dado, que o uso da indumentária acrescenta um significado ao corpo. Ele ajuda na caracterização e faz com que a intérprete se sinta dentro do personagem.
A postura elegante, sombreada pelo figurino exuberante, dá a St. Denis o ar da dança religiosa por ela interpretada, e tal indumentária, portanto, contribui para a atmosfera do espetáculo. Ele tem uma importância tão grande quanto os cenários e gestos, porque é um dos elementos fundamentais para a transmissão de uma imagem completa da dançarina para o público.
A indumentária cênica compõe, dessa forma, o conjunto de mensagens não verbais do espetáculo, e Ruth St. Denis soube se utilizar de tais elementos para compor suas coreografas.Essa composição de figurino obedece ao corpo que o veste. Como argumenta Mauss (1974), o corpo é um fato social total, ele é um produto biológico ou psicológico individual, mas obedece a regras sociais. O corpo vestido pela intérprete para Radha, compõe juntamente com os cenários, a música e o fgurino o espetáculo e
forma um conjunto em que todos os elementos se intercruzam, se hibridizam na cena dançada. O resultado é uma obra precisa, mística, revirando e girando com uma dança que carrega os aspectos
religiosos de uma determinada civilização, mas que é pontuada por momentos de inacreditável delicadeza cênica.De maneira análoga às artistas supracitadas, recriando as funções do fgurino na dança, cabe ressaltar a importância de Martha Graham para a cena da dança do século XX. Artista voraz e dedicada a sua arte, Graham foi responsável por criações coreográficas surpreendentes,
bem como figurinos e cenários inusitados que, com sua habilidade teatral única, extraía desses objetos suas propostas fundamentais, e transformava-os em verdadeiras extensões do corpo e do movimento do dançarino, fazendo-os participarem ativamente da coreografa.
Cabe ressaltar que, em Lamentation, seu figurino é um tubo de stretch que cria o efeito coreográfico. A peça é sobre uma mulher que lamenta, mas um pouco sobre a dor própria. O pano roxo serve de tela para as movimentações de cabeça e braços, as mãos e seus pés ficam de fora do pano. A dança é criada pelos deslocamentos dentro do pano.
Sobre Lamentation, de 1930, Graham (1993, p. 86) afrma: “Lamentation, minha dança de 1930,
é um solo em que uso um longo tubo de tecido para indicar a tragédia que obceca o corpo, a
capacidade de se esticar dentro da própria pele, de testemunhar e testar os perímetros e as fronteiras
da dor, que é nobre e universal”.
O figurino apresentava uma mulher que se desejava livre, ou pelo menos com mais direitos e mais dignidade. E representava uma grande transformação em relação ao final do século XIX, onde as mulheres da elite, com seu vestuário, desenhavam uma postura rígida, com movimentos contidos, vestidos muito pesados e espartilhos que encarceravam o movimento natural.
Night Journey, balé de 1947, baseada no épico Édipo Rei, de Sófocles, foi concebida a partir de um
roteiro de movimentos desenvolvido por Martha Graham. Nesta peça, ela dramatizou, através da
dança, o complexo de Édipo, reinterpretando a tragédia de Sófocles. Em imagens analisadas sobre essa peça, Graham demonstra o sofrimento de Jocasta ao descobrir seu incesto. Graham veste-se em longo vestido e sobre o colo usa um manto. Nas mãos, carrega uns ramos dados a Jocasta por Édipo,
quando a conduzira da cama para o banquinho, onde se tornou rainha. Tal fgurino tem relação com a tragédia, com a expressão dramática da personagem, com o corpo que se precipita ao chão insistentemente, com o ritmo musical que cria um clima tenso, composto, alternando sequências em
adágio e stacatto.
Por fm, alguns símbolos convencionais como a corda, os ramos verdes, a cama estilizada, dão contorno específico à peça e, por assim dizer, referencializam-na. Faz-se necessário referenciar a cenografa criada para esta peça por Isamu Noguchi, quen complementa a indumentária dos personagens:
a cama criada por ele é totalmente diferente do mobiliário convencional. É a representação de um homem e uma mulher, absolutamente nada semelhante a uma cama. Tal imagem sugere uma cama despojada até o esqueleto, até o próprio espírito, como faz referência Graham (1993) a
este objeto.
É neste cenário que a peça tem seu desenrolar trágico. É nesta cama que Jocasta comete o pecado
do incesto, onde ela conheceu o rapaz que, com o passar do tempo, aceitou como seu amante,
marido e pai de seus flhos. É nesta cama que sua vida de amor e maternidade se consumou, se
passou. Nesse aposento sagrado. Graham utilizou cenários e objetos de cena feitos por Isamu Noguchi, especialmente para a peça, mas que traziam em si significações próprias e traçavam, por si só, “ecos metonímicos”, no dizer de Souza (2001), com relação aos objetos que representavam.
Em Night Journey, tais elementos se hibridizam, intercambiam-se, promovem comunicação entre a dança e os elementos que a compõem: cenário = aposentos de Jocasta; corda = instrumento para enforcar-se (mas também união a Édipo, cordão umbilical); ramo = fertilidade; coro = sofrimento; cajado (cego) = lei/destino; cama (dupla/casal) = união matrimonial; figurinos = realeza.
Todos esses elementos interagem com a coreografa que se transforma em narrativa qualitativa, não
remetendo às ideias concretas, mas sim às imagens abstratas, dramas psicológicos e existenciais. Propõe uma reflexão sobre o homem e sua impotência sobre o destino (que já havia em Édipo Rei
) e associa essa impotência à condição feminina. Tudo isso eleva-se ao estatuto trágico, que torna
Night Journey, essa jornada noite adentro, um símbolo do grito da mulher em sua posição de geratriz: é o útero que revive pelo movimento a dor da perda do feto que o habitava e o desespero pela constatação do crime de incesto (que representa o retorno daquela perda).
Tais interpretações, cabe salientar, são buscas de sentido às metáforas do texto, cuja compreensão não é de todo acessível (SOUZA, 2001, p.179).
Outro elemento evidenciado na peça e que nos parece uma extensão do figurino da personagem é a corda. Tal elemento representa nascimento, união e morte: “[...] As cordas são de seda, identificáveis com o cordão umbilical [...]” (GRAHAM, 1993, p. 143). Esse elemento simboliza o seu crime contra a vida e a civilização, mas também sua consciência, seu amor, sua união com Édipo, sua fertilidade.
Ao descobrir seu incesto, Jocasta, de posse desse elemento, determina sua sorte:
Ela se adianta lentamente [...] durante essa passagem, ela dá passos muito pequenos, muito vazios, enquanto solta a túnica nas costas. E num determinado momento, talvez três ou quatro passos, variando segundo a necessidade, ela deixa a túnica cair a sua frente. Toda a sua realeza, toda a sua majestade tomba com aquela túnica. Ela caminha sobre a túnica, estica-a nas mãos, até a corda que se torna o cordão umbilical, ergue-a, estica-a nas mãos, olha-a com profundo amor, não com ódio, mas com piedade, afeição e trágica consciência de que ela lhe trouxe beleza e angústia [...] ela se volta para o fundo, puxa a corda em torno do pescoço (GRAHAM, 1993, p. 145, 146).
Tal elemento cênico, como evidenciado em parágrafos anteriores ,sinaliza a tripla signifcação
da corda. Ora representa o cordão umbilical, entre Jocasta e Édipo, ora o laço amoroso que os prende, ora a mãe incestuosa que se estrangula.Certamente outros balés de Graham demonstram a grandeza de seus figurinos, contribuindo com a encenação da peça. É preciso acentuar que tal elemento simboliza a multiplicidade de suas intenções, e que permite seguir seu desenvolvimento através da ação coreográfica. Em suma, para Graham, cenários, música e figurino fazem parte da liturgia
coreográfca da artista.
Considerações Finais
O figurino na dança não é apenas ornamentação, é também linguagem, é um sistema constituído de signos que indicam uma forma de expressão. Podemos ver o figurino na dança como um meio de comunicação e instrumento de construção de uma identidade, que serve tanto ao indivíduo quanto a um grupo social inteiro. Observa-se que tal elemento cênico, longe de ser fgurante, possui fala, forma, cor e espaços próprios. Na dança, ele discute com o corpo que o reconstrói, a cada instante, novas formas de pensar a relação corpo-roupa. Ele deve ser pensado como informação relevante a ser
transmitida para o público.
Notou-se neste ensaio que o figurino participa da cena nos corpos dos artistas citados. O figurino desses artistas intérpretes da cena amplifica seus corpos dançantes, dando-lhes vida e vitalidade, além de servir como uma cenografa ambulante ou um cenário-figurino.
Ele também ajuda na mobilidade dos movimentos coreografados. A respeito do fgurino, Pavis (2005), ao analisar espetáculos de teatro, de mímica, de performance e de dança, diz serem adereços
decisivos para a compreensão da representação.
Para o referido autor, o fgurino é ao mesmo tempo significante e significado, posto que na
cena ele apresenta funções de caracterização, de localização dramatúrgica, de identificação ou
disfarce do personagem e de localização do gestus global do espetáculo.
Ainda fazendo referência a Pavis (2005), segundo ele, o figurino está na constituição da materialidade do espetáculo; logo, é significante. E é um elemento integrado a um sistema de sentido,
logo é signifcado. Dessa forma, o figurino carrega vários sentidos que identificam os personagens,
tornando-os presentes, visíveis e reconhecíveis por aqueles que assistem ao espetáculo.
Percebeu-se nas imagens analisadas que os figurinos, assim como os adereços e
cenários, figuram como um sistema integrador na representação. O espectador, além da dança,
aprecia-os como ponto de referência, como sinalizador dessa representação.
REFERÊNCIAS
- BARIL, J. La Danza Moderna. Barcelona: Paidós, 1987.
- LEITE, Miriam Lifchitz Moreira.Texto visual e texto verbal. In: FELDMAN-BIANCO; LEITE (org.). Desafos da Imagem. Campinas, São Paulo: Papirus, 1998.
- COLLECTIF, RM. Loïe Fuller: Danseuse de l’art nouveau. Paris,2002.
- CURRENT, Márcia Ewing; CURRENT, Richard Nelson. Loïe Fuller. London: Ed. Northeastern University, 1997.
- DUNCAN, Isadora. Minha vida. Tradução de Gastão Cruls. Rio de Janeiro; José Olympio Editora, 1986.
- GRAHAM, Martha. Memória do sangue: uma auto biografa. Tradução de Cláudia Martinelli Gama. São Paulo: Siciliano, 1993.
- GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Tradução de Glória Mariani e Antônio Guimarães Filho. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1980.
- MAUSS, Marceu. Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
- PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2005.
- PIMENTEL, L. C. M. El cuerpo híbrido en la danza: transformaciones en el lenguaje coreográfco a partir de las tecnologías digitales. Análisis teórico y propuestas experimentales. Valencia: UPV, 2008.
- Tese Doutorado em Artes Visuais. Faculdade de Belas Artes, Universidade Politécnica de Valência, 2008. Disponível em: http://dspace.upv.es/manakin/handle/102 51/3838. Acesso em:(01/03/2012).
- SOUZA, Aguinaldo Moreira de.Palavra do corpo: confuência de linguagens em Night Journey. Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 163-181, 2001.
- SPOLADORE, Bruna. Loie Füller: aproximações entre corpo-imagem e cinema de corpo Anais do II Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA, julho/2012.
- SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. In: CORBIN, Alain; courtine, Jean-Jacuqes;
- VIGARELLO, Georges.História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008
Autor: * MARCILIO SOUZA VIEIRA é professor da Rede Pública de ensino do município de
Natal/RN. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Mestre em Educação pelo mesmo programa e Graduado em Artes Cênicas e Educação Física, também pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É membro pesquisador do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento.
Fonte: Revista Arte da Cena - encontra-se licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Não Adaptada.
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