Dança do Ventre: sexualidade e autonomia da mulher que dança

Mulheres praticam Dança do Ventre no Centro Cultural de Bauru/SP. Foto de Tiago Campos/G1.

Texto de Nara Lasevicius para as Blogueiras Feministas.

– Quer tomar uma cerveja com a gente?

– Hoje não dá, tenho aula.

– Aula de quê?

– Dança do ventre.

– Jura? Que legal! É tão sensual…os homens adoram, né?


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Quando se faz Dança do Ventre, ouvir esse tipo de comentário é mais comum do que se supõe e pode partir de qualquer pessoa. Acredito que toda mulher que pratique essa dança já ouviu algo parecido e quase sempre passa batido. A Dança do Ventre foi meu primeiro contato com o feminismo, ainda que não tivesse consciência disso. Somos ensinadas desde pequenas a rivalizar com outras mulheres, ou pelo menos a nos comparar incessantemente umas com as outras. Com a dança, fui percebendo nas aulas a presença dos mais diversos corpos, de legging e top, sem medo de ser feliz. Claro que cada uma passa por processos diferentes, mas nunca tinha visto tantas mulheres felizes, no mínimo tentando, se arriscando nesse longo caminho de autoaceitação e de busca por um trato mais carinhoso consigo mesmas.


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Mulheres praticam Dança do Ventre no Centro Cultural de Bauru/SP. Foto de Tiago Campos/G1.
Mulheres praticam Dança do Ventre no Centro Cultural de Bauru/SP. Foto de Tiago Campos/G1.
Sim, a Dança do Ventre é vista por muitas pessoas no Brasil como uma dança sensual, mas é bem mais que isso, especialmente para as mulheres. Tem a ver com a celebração da vida, com o pranto por uma triste memória, com a introspecção que nos leva ao entendimento de uma emoção, com as tradições folclóricas dos povos árabes… No entanto, na cultura ocidental há uma ideologia reducionista que a torna mero fetiche e coloca a mulher que dança sobretudo como um corpo a ser desejado, visto, sexualizado. Temos essa construção de que o quadril está sendo oferecido para o gozo, porque em nossa cultura essa parte do corpo é enxergada apenas sob a perspectiva da sensualidade, mas, na Dança do Ventre, a exposição do quadril não se reduz a isso, podendo, por exemplo, celebrar a fertilidade. Sem falar que cada vez mais temos homens inseridos nesse universo — procurem, por exemplo, por Flávio Amoêdo, Tito Seif e Renato de Boita.

A filósofa belga Luce Irigaray é bem precisa ao definir que a sexualidade feminina tem sido sempre teorizada a partir de parâmetros masculinos, como coloca em seu livro ‘The sex which is not one’ (1985). Assim, partindo desses parâmetros, toda a riqueza da Dança do Ventre é reduzida a um “os homens adoram, né?”. Justamente tal arte, surgida há milênios, que foi praticada por muito tempo em espaços fechados, exclusivamente femininos, era ensinada de geração em geração como forma de autoconhecimento pela mulher, como exercício da sexualidade, da descoberta do prazer.

Os discursos construídos – e, sobretudo, os consolidados – sobre a sexualidade afetam de um modo específico a vida sexual das mulheres. Religião e Biologia circunscrevem o corpo feminino em uma série de obrigações e funções, e não há disponibilidade para o prazer, para a relação autônoma da mulher com seu corpo. Pensando nessa questão a partir da relação com o feminismo, percebi que a Dança do Ventre pode trazer as pessoas para esse diálogo, dado que a descoberta de autonomia por meio do corpo que dança pode ser de qualquer corpo: o caráter libertador da dança não passa por critérios biológicos, mas simplesmente pela construção de um discurso sobre o próprio corpo.

Aprofundando um pouquinho, há um aspecto nessa arte que convida a pensar nossa relação com o outro, esse exercício diário que devemos fazer. Sendo a Dança do Ventre parte de uma cultura que, de modo geral, pouco conhecemos, é muito comum reproduzirmos preconceitos partindo de nossa (ocidental) percepção sobre tudo o que é oriental.

Edward Said, famoso por seu estudo sobre o Orientalismo – exatamente esse imaginário criado pelo Ocidente que diz o que o Oriente “é” –, tem uma expressão para isso que é muito interessante para essa discussão: “domesticação do exótico”. Confesso que tenho um problemão com essa palavra “exótico”: me parece sempre um jeito de resumir aquilo que é diferente da gente e, portanto, cria uma distância que só ajuda a perpetuar preconceitos… Em vez de buscar entender, conhecer aquilo que não faz parte da nossa cultura, nos prendemos a estereótipos e lugares-comuns numa atitude mais confortável para nós, mas que pressupõe que o outro é domesticável (a palavra é pesada, mas precisa ser para deixar explícito o jogo de poder) segundo nossas crenças e ideias. Exótico é sempre o outro, aquele cuja cultura não é a predominante. Esse pensamento está de mãos dadas à ideia de que a mulher que dança o faz para agradar o homem, para sensualizar para um outro que não necessariamente ela escolheu.

A sexualidade, construída como discurso, é desempenhada essencialmente como relação de poder, de subjugação, de reduzir o outro a objeto, nunca podendo ser sujeito, mantido sempre nessa posição passiva. Isso se expressa também no modo de apreensão, culturalmente falando, da Dança do Ventre. A mulher – muitas vezes vista como a “odalisca” e nada mais – exibe seu corpo como promessa de um gozo masculino, tornando evidente em seu corpo aquilo que já está dado: sua disponibilidade ao corpo do outro, à intervenção silenciadora, que viola. No entanto, há uma contrapartida que faz toda a diferença para o que estamos discutindo aqui: a dança possibilita à mulher um conhecimento de seu corpo (e de suas possibilidades como indivíduo) que a empodera.

É justamente por acreditar nessa contrapartida que fui perguntar para minhas companheiras de dança o que havia mudado dentro e fora delas desde que começaram a prática. Relatarei aqui de forma resumida, porque os depoimentos foram riquíssimos e emocionantes, mas há pontos em comum que nos fazem entender como a Dança do Ventre pode ser um instrumento feminista, além de tudo o que ela já é:

– A aquisição de uma consciência corporal que lhes permite cuidar melhor de si, de sua saúde, entender a linguagem de seu próprio corpo;

– O entendimento de seu corpo como algo a ser valorizado, que merece atenção, afeto, reconhecimento, que não se constrange pela exposição ao olhar do outro;

– O surgimento e a consolidação de um sentimento de camaradagem feminina, que permite ajudar e ser ajudada, reconhecer a autonomia e a beleza em si e na outra – e isso vai além do espaço em que se pratica a dança, estendendo-se para outras esferas da vida dessas mulheres;

– Melhoria na capacidade de se comunicar, de se fazer ouvir;

– A possibilidade de encontrar algo dentro de si que reconheça como seu – entendendo que pode fazer com isso o que quiser.

Por tudo isso, considero libertador o que a Dança do Ventre pode oferecer, não apenas convertido em benefícios físicos, mas em possibilidades de discursos.

Fonte | Blogueiras Feministas - Nara Lasevicius Carreira



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